Um dia, nas labaredas



Eu não via o Cavalcanti fazia uns 12 anos.
Havíamos sido colegas numa agência em São Paulo.
Ele já gozava de notoriedade no meio por essa época.
Tinha escrito uns filmes bastante comentados quando eu ainda era um estagiariozinho pretensioso. Ganhara prêmio como melhor profissional do ano e outras dessas medalhinhas pelas quais os criativos enforcam a mãe pra ter pregada na lapela.
Um dia entrei em sua sala e, munido daquela coragem dos inocentes, lhe mostrei uns textos. Ouvi dele:
- Vou pegar sua conta, moleque. Você merece mesmo umas ripadas.
Amizade à primeira vista.
Para completar, havia em comum o nosso amor pela noite e a música.
Virava e mexia estávamos no velho Baiúca tomando uísque, comendo pipocas e falando mal de todo aquele "mercado babaca".
O Cavalcanti batia comigo até na opinião sobre os outros criativos.
Sempre odiou os nossos iguais. Não existia para ele nada mais patético do que um cara de Criação. Uns babões, metidos a saberem alguma merda importante sobre qualquer assunto. Pareciam esquecer que ninguém, afora suas famílias, estava pouco se cagando se eles eram os Einstein ou se não passavam de um bando de ostras cabeçudas.
Marcamos um almoço num pequeno restaurante da Pedroso Alvarenga.
Ficava mais prático para o Cavalcanti . Ele morava a dois quarteirões dali e, na mesma Pedroso, montara um escritório , atendendo a um número seleto de clientes.
Foi pontual. Chegou a uma na companhia de Cavalcanti Filho que, como nós, era redator.
- Deixa eu te apresentar esse outro babaca da Criação - foi ele dizendo sobre o rapaz.
Abrimos um Rioja para brindar o raro reencontro.
Cavalcanti fez questão de frisar que pagaria o vinho. Além de ter ganho uma fábula em sua carreira, ele conhecia a minha recente - e infelizmente crônica - condição de free-lancer da Propaganda.
Quando os pratos chegaram à mesa o celular do Cavalcanti tocou. Era a esposa.
Ele ficou alguns segundos ouvindo o tartamudear dela. Depois, virou-se para o filho e disse, calmamente:
- Vai até lá em casa. A mamãe disse que - parece - que tá havendo um incêndio no apartamento.
Cavalcanti Filho engatou uma primeira e saiu quase pulando da mesa.
Eu, que conhecia muito bem a fidalguia do pai, emendei:
- Você não quer dar uma olhada no que aconteceu? Depois a gente volta, almoça…
- De maneira alguma - disse ele -, me fala o que você anda aprontando…
Voltamos a tergiversar sobre as estupidezes da Publicidade; o Alzheimer do Cerqueira (um talentoso ilustrador que trabalhara conosco); a falência da produtora do Lourenço ("o filho da puta bebeu a empresa…").
Depois de alguns minutos, o Cavalcanti começou a se impacientar. Ligou para o celular da mulher, deu caixa postal. Foi minha vez de tranquilizá-lo.
- Fica frio. Uma vez eu tive esse problema no meu apartamento. Era um curto circuito de nada. Só fumaça.
E acrescentei, naquela convicção dada pelas três taças do vinho espanhol:
- Além do mais, se fosse um puta incêndio - um Joelma, um Andraus - daqui a pouco estariam subindo esta rua vários caminhões de bombeiros.
Foi acabar de dizer a última frase e logo sobrevieram as sirenes:
- Uóóóómmm, Uóóóómmm, Tiiiiiimm!!!!
Subiam pela Pedroso três Scania vermelhos da Brigada Antifogo.
Eu ia fazer uma observação engraçada, para quebrar o gelo.
Mas, de novo:
- Uóóóómmm, Uóóóómmm, Tiiiiiimmm!!!!
Outros dois carrões, com suas enormes escadas Magirus.
Olhei para o velho Cava. Lívido, ele ponderou:
- Melhor irmos lá.
Subi a rua num grande constrangimento. Cavalcanti mostrava todo seu fairplay ainda tentando puxar conversa comigo. A comunicação era difícil, pois tínhamos que desviar das poças d'água, mangueiras e fotógrafos.
Quando paramos no semáforo da esquina de seu apartamento, senti o cheiro de plástico queimado. Um senhor idoso nos abordou:
- Parece que foi dos grandes. Diz que estão saindo umas línguas de fogo de 5 metros…
A nonchalance de Cavalcanti acabou ali. Entrou fumaça adentro, saindo do meu raio de visão.
Só fui encontrá-lo mais tarde, as chamas já aplacadas.
Estava abraçado à mulher, à netinha e a seu gato - não me recordo se exatamente nessa ordem.
Quando o vi, comentei:
- Que almoço…
Ele já voltara ao normal, pois respondeu com um de seus trocadilhos:
- Fogo, hem?
Começamos a rir de nervoso. Só não gargalhamos mais porque a empregada da dona Wanda, do 42, sufocada pelo fumacê, desmaiou em cima dos meus pés.

Comentários

  1. Narrativa deliciosa, um pouco fora do habitual de seus outros textos, com exceção de um dos últimos que li. Nem me atrevo a perguntar o quanto tem de verdadeiro no texto.

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  2. Belo texto, professor! Como dito acima, é uma escrita deliciosa. É muito bom ler seus textos, que já conheço e admiro há algum tempo. Aproveitando, também fico sem jeito de perguntar se o incêndio ocorreu ou se é uma história fictícia. Verdade ou não, sei que o incêndio acabou bem, e o seu texto, melhor ainda. Parabéns e obrigado por dar-nos este presente literário.
    Um abraço pro Castelo.
    João Aranha

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  3. sim, o acontecido aconteceu de fato. abraços e beijos.

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